Salvador, 02 de Julho de 2009

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Querida Carol,

Foi muito bom te encontrar aqui em Salvador, e como não seria? Mas desta vez aconteceu numa data que tem algum tipo de relevância histórica. De fato, tem bastante relevância para esta terra que tanto estima e até para o nosso país, digo isso mesmo não sendo eu um venerável patriota, como é de seu saber.

Ao confessar sua ansiedade e suas noites perdidas à espera desse momento lembrei-me do quanto foi interessante chegar à sua cidade, admirar seu povo e sua dinâmica de metrópole incessante; sua correria e sua civilidade diferentes das daqui. Não menos importante, mas também não mais.
Também matutei que ao chegar, depois de ter visto muito do azul do Oceano Atlântico, no sentido Sul-Norte você avistou de cima esta cidade península, em forma de V, com dois litorais, um de mar aberto e o outro banhado pela baía de Todos os Santos – no dizer de Gil, de um lado Iemanjá e do outro Senhor do Bonfim - além de uma linha acompanhando à sua esquerda que é a Ilha de Itaparica. Viu o miolo da cidade, Brotas, Cabula, Avenida Bonocô, Cajazeiras, Itapoã, São Cristovão e pousou, já que possui asas, no Aeroporto Dois de Julho.

Acredito que pra você tenha sido muito prazeroso passar este Dois de Julho aqui na Bahia (e foi, pois felizmente pude ver isso em seus míopes e embriagados olhos verdes), mesmo impossibilitada de ir à Praça Dois de Julho (Praça do Campo Grande) chorar no pé do Caboclo, ou comparecer na cidade de Cachoeira, que por lei se torna capital da Bahia nos dias 25 de junho em reconhecimento à sua liderança e resistência, ou ter ido ver as festividades de comemoração da Independência da Bahia, e do Brasil na Bahia, no histórico bairro de Pirajá, local onde foi travada batalha de maior importância e onde uma Corneta transformou-se na arma mais eficaz; fato curioso, inusitado e até humorado que engorda o imaginário da noção de baianidade.
Em verdade, a palavra atribuída a este acontecimento é muito forte e condizente com as concepções da época, no entanto ela hoje assume uma carga semântica tal que permite tornar-nos desejosos de muitas outras conquistas além das obtidas a Cento e Oitenta e Seis anos atrás. Que emancipação a soberana nação brasileira garante aos milhares de descamisados, famintos, marginalizados e dependentes das esmolas, pequenos furtos, serviços escusos e todo tipo de sujeição que a vida em miséria é capaz de causar?
Esta é a realidade encontrada diariamente em quase todas as esquinas desta cidade que você tanto admira, do Pelourinho à Barra, por toda a Cidade Alta e Baixa. Esta realidade que se nos faz mal faz muito mais a aqueles aos quais quase não enxergamos; realidade que está espalhada por todo o país e não menos presente em sua cidade, como pude constatar ao aí chegar.
Mas, falemos de coisas boas, falemos aqui como uma necessidade de pintar no ar o sentimento de liberdade que nos assola quando viajamos, quando chegamos para visitar pessoas que amamos, quando visitamos ou revisitamos lugares, quando assistimos ao Sapato do Meu Tio ou ao Mistério do Samba, quando entramos nos estádios do Pacaembu ou Pituaçu, quando apreciamos o MAM ou o MASP, quando saltitamos pelas avenidas Paulista ou Sete de Setembro; e vamos de um lado para o outro, livres (e a liberdade não seria apenas a própria ilusão de liberdade?), sem obrigação de satisfações e sem tomar conhecimento de convenções ou impossibilidades, promovendo encontros cinematográficos, ficando bêbados...

Nunca estive em São Paulo num Dois de Julho, mas esta data me faz lembrar um dos locais lá apreciei, pois hoje, como você bem sabe, é o dia da Independência da Bahia e, ao falar em independência lembro-me do museu da USP, ou melhor, o Museu Paulista, também conhecido como museu da Independência ou do Ipiranga, que é provavelmente uma referência para os estudos e para a memória das lutas pela Independência do Brasil e que tive a oportunidade de visitar em minha primeira ida a seu estado. No seu centro, acima da escadaria de acesso ao andar superior, há o reconhecimento a diversos estados de diversas regiões brasileiras: São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Goiás, Amazonas e outros, e não me parece barrista dizer que a ausência da Bahia entre os estados que são reconhecidos como grandes redutos de resistência e de protagonismo na Independência brasileira é uma imperícia e uma negligência. Aliás, a única citação referente a Bahia é o reconhecimento a Maria Quitéria, exposta mais como um símbolo que contribui à reiteração das atuais causas feministas que como personagem representativa da resistência baiana. É também de se espantar como a maior Universidade do Brasil, com orçamento anual contado em bilhões, nascida após a Guerra de 1932 com o propósito de conhecer o Brasil (o desconhecimento do Brasil foi uma das principais causas apontadas por intelectuais partidários do Movimento para a sua derrota) negligencie e assuma esta postura de ignorância para importante episódio da história da Independência do Brasil, além de se tratar de uma das poucas lutas de caráter estadual no país que não teve por objetivo reivindicações separatistas ou disputas pelo governo central.

Reitero desde já que suas vindas serão sempre bem-vindas - por mim e por todos aqueles que têm a tácita autorização (ou cara-de-pau) de carinhosamente te xingar -, que saudade faz ponte aérea, e que a cidade em forma de V de Venha estará sempre aqui a te convidar. No entanto, sendo eu sabedor de seu grande desejo de retornar a residir na Bahia não quero usar de palavras como catalisador ou discurso de incentivo à sua batida em retirada, aliás, é reconhecendo a beleza de sua atual cidade, não menos bela mas também não mais, que te digo novamente: aproveite tudo que ela tem a te oferecer. E, no mais, sendo muitos o mundo é um só, devemos aproveitar cada detalhe, seguindo o exemplo de baianos como Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil:


São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor...
... Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito”
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Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
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Aqui prá vocês!Eu sou da Freguesia do Ó!”

Quem sabe um dia eu não passo um Nove de Julho contigo aí?
Sempre de braços abertos, um grande e forte abraço, seu
Ericão





* Imagem do Monumento em Homenagem ao Caboclo na Praça Dois de Julho, Campo Grande, Salvador – BA (Google)
** Imagem da Fachada do Museu Paulista da USP no Parque da Independência, Ipiranga, São Paulo – SP (por Eric Barreto)