Médicas

Eric Barreto

Médicas adoram a ilha
Todas as médicas que são amigas minhas vão para ilha
O que tem na ilha? Namorados?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram carros
Todas as médicas que são amigas minhas têm carro
Qual a vantagem do carro? Comodidade?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram pessoas saudáveis
Todas as médicas que são amigas minhas vivem com pessoas saudáveis
Qual o problema dos raquíticos? Falta de força?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram ser amáveis
Todas as médicas que são amigas minhas são amáveis
Por que ser tão amáveis? Vocês amam alguém?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram pacientes fieis
Todas as médicas que são minhas amigas exigem fidelidade
Por que ser tão fieis? Vocês são fieis?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram ter casos com outros profissionais
Todas as médicas que são amigas minhas têm casos com outros profissionais
Por que outros profissionais? Não dá pra confiar em médicos?
Eventualmente sim, respondem elas. Eventualmente.

Sangria desatada

Flamarion Silva

Acho que estou prenha. Contando a data, hoje faz um mês e doze dias. Ainda não contei para ninguém. Nem mesmo para o Jefe, que é o pai. Acho que a primeira pessoa a saber vai ser a Jéssica, que é minha melhor amiga e vive dizendo:
– Não tem outra, a madrinha serei eu. Nós, que somos as maiores amigas... Madrinha é que nem mãe. Tipo assim uma segunda.
Parece que estava adivinhando, a Jéssica. Deve ter sido a boca daquela ordinária.
Hum, mainha vai ter um troço quando souber.
– Vá estudar, vá estudar. Quer vida igual a minha? ela vive dizendo. Conversar, conversa mesmo, de mãe para filha que é bom... nada. Só sabe mandar estudar, estudar.
– Se estudar é bom, por que você não estudou, mainha?
– Olhe a ousadia! Olhe a ousadia! Não tem amor aos dentes?
Mainha fica nervosa fácil, mas depois de qualquer atrito mainha dá para cansar e fica triste que eu me arrependo. Acho que ela está ficando velha muito rápido. Não são os anos, deve ser a vida dura que ela leva. Uma vida, mainha. Também, cinco filhos. Painho abusa, diz que deu a ela cinco diplomas, que ela é uma mulher formada e reformada. Mas estudo estudo que é bom, nenhum dos dois têm. Ainda bem que nunca se separaram. Juntos desde o início. Minhas amigas quase todas filhas de pais separados. Dizem que sou anormal, que minha família é das antigas. Confesso que às vezes até penso que seria bom se mainha arranjasse outro homem. Mas penso só por pensar. Deus me livre! Mas talvez assim com um amante, vamos supor, ela se arrumasse mais, cuidasse do cabelo, da pele desidratada, usasse umas roupas transadas. Só vive no desprezo. Painho também eu deixava arranjar amante. Ah, não, não, a outra ia explorar ele. E mainha ia sofrer demais, ficar doente e morrer de amor, ou de fome.
Que doideira essas idéias minhas. Olhe aonde vim parar. O pensamento da gente parece que tem graxa, corre solto.
Ai, meu Deus, e agora o que é que eu faço? Melhor dormir. Amanhã eu penso nisso, como diz aquela mulher linda do filme E o Vento Levou. Dizem que parir dói, pois já começou a doer. Ai. Melhor dormir.
– Bênção, mãe.
– Deus lhe dê juízo.
– Bênção, pai.
– Seu pai já está dormindo.
– Mainha.
– Que é, Clarice?
– Parir dói?
– Muito. Dói até agora. Vá dormir que amanhã acorda cedo para a escola.
– Boa noite, mainha.
Neste quarto eu e Janete num beliche. Eu durmo embaixo porque sou a mais velha; também, Janete chorou tanto querendo ficar em cima que mãe deixou. No outro beliche dormem o Nico e o Celivaldo. O nome de Nico é Nivaldo, que nem o pai. Ele é mais velho que o Celivaldo, por isso dorme embaixo também. No outro quarto, painho, mainha e Ronaldinho, que fez dois anos em maio. O Ronaldinho dorme no meio de pai e mãe. Às vezes ele chora muito de noite que ninguém dorme.
– Acho que não vinga esse menino, pai disse um dia.
Mãe ficou brava com pai. É que o Ronaldinho é muito magrinho e só anda com o nariz catarrando. Uma vez ficou tão entupido que mãe teve de chupar o catarro do nariz dele. Ela foi no médico e o médico passou uns remédios que pai não teve dinheiro para comprar. Voinha foi que fez uma xaropada de folhas e agora ele está bem melhor, graças a Deus. Ai, ai, ai.
– O que foi, Clarice?
– Ai, mainha, umas dores no pé da barriga.
Mainha se levanta e vem ver o que eu tenho. Penso em contar tudo. Todo mundo diz que mãe é mãe; pai é que não entende e quer logo bater. Ai. E ela já passou por isso. Ai, Meu Deus, o que é isso agora?
Sinto um jato quente escorrer de minha vagina. Meu Deus, eu devo estar abortando. Não posso esconder mais, não posso.
– Mainha?
– O que é? Onde está doendo?
– Ô, mainha...
– O que é, minha filha? Vamos, pare de chorar que logo passa.
– Mainha...
– Célia! o pai chama do outro quarto.
– A Clarice está com umas dores.
Preciso contar logo o que está acontecendo.
– Mainha... eu, eu, eu estou pren...
– Está o que, menina?
– Estou prenha. E sangrando.
Pronto. Contei tudo. A cama manchada de sangue, a calcinha encharcada de sangue.
Mãe leva um susto com a notícia. Depois levanta o lençol e leva outro susto.
– Meu Deus! O que foi que você fez, menina?
– Eu não fiz nada, mãe; juro.
Mãe pensa que eu provoquei um aborto. Mas eu juro que não fiz nada disso, além do mais, minha religião não permite; é pecado criminoso.
– O que foi, Célia? pai pergunta, chegando na porta do quarto.
– Sua filha está grávida, mãe diz assim, muito segura.
– Está vendo, está vendo, Célia? Bem que eu disse que essa sua filha andava muito solta. E quem é o pai, hein, quem é o pai?
– Ora, Nivaldo, só pode ser o namorado dela, não é? Quem mais podia ser? Será possível que você nem sabe que sua filha está namorando?
– Namorando, namorando, no meu tempo namorar não embuchava ninguém.
– Pois é, agora os tempos são outros, mãe diz, me ajudando a ir até ao banheiro e providenciando ajuda.
– Vai, Nivaldo, vai, vai ver se Roberto do táxi está em casa.
– Táxi, táxi, agora é táxi. Não soube procurar sarna, agora se coce, pai diz na minha cara, muito bravo. Não vou providenciar nada, vou é dormir.
Pai sai e volta dizendo que o táxi está esperando.
No posto da VIII, que é mais perto e atende todo mundo que não tem convênio médico, o médico me olha logo com cara de mau. Todo mundo pensando que eu provoquei um aborto.
– Mas que droga! Eu não já disse que não provoquei aborto nenhum?
– Calma, minha filha, calma.
Minha mãe é a única pessoa que me compreende.
– Boa noite, diz a médica novinha que se aproxima da maca onde estou deitada.
– Boa noite, dizemos todos, educados, na esperança de sermos bem tratados.
– A senhora não é dona Célia, que mora na X? a médica pergunta. Minha mãe, na sua simplicidade, responde:
– Sou. É verdade, estou lembrando da senhora. A senhora é Suzana de Arlete, que morou na X. Estou certa?
– Isso mesmo, ela diz. Nos mudamos para o Imbuí. Meus pais se separaram, o que foi bom para eles: já não estavam se entendendo; agora estão mais felizes que nunca. Minha mãe ainda mora no Imbuí, mas eu moro com meu namorado, na Pituba. E vocês, alguma coisa em que eu possa ajudar?
– É minha filha Clarice, que está abortando, mas o doutor já veio ver ela. Fez uns exames e...
– Meu Deus, então é sério; começou cedo, hein, Clarice. Bem, tenho que ir. Até logo e se cuidem.
A médica sai e minha mãe se vira para mim.
– Viu, Clarice, viu? Estudou. Está aí, moça bonita, formada, com apartamento na Pituba, na Pituba!Já pensou? E você? Nem acabou os estudos e já metida numa encrenca deste tamanho. Deus que me perdoe, mas que este aborto lhe sirva de lição. Moça tão nova e já méd...
– Está bem, mãe, está bem; já entendi.
O doutor aparece e diz que eu já posso ir para casa. Que o sangue todo não é aborto. Que as dores são do sangue da menstruação, que atrasou. Que tudo isso é muito normal. Que eu tome trinta gotas de Elixir Paregórico. Ai, que alívio!
Agora estou em casa. Todos dormem, mas eu estou na cama, acordada, pensando que daqui a pouco tenho de me levantar para ir à escola.
Pituba. Já pensou? Pituba!
E médica!