Mais uma vez caminhar.

Carol Mansinho

Transeunte transmutado, transportado para lá
Bem longe
De tudo que se quer,
Sem laço
Sem paço
Sem grana sequer.

Vai passante passageiro, passatempo
Para preencher os dias vazios
O passo
Para mostrar o mover
E pé a pé tentar se convencer
Que se o corpo vai adiante, a cabeça vai também.

Convite para ver.


Carolina Mansinho.

Foto: Cartier-Bresson


"Fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração” disse certa vez Cartier-Bresson, um dos maiores nomes da fotografia do sec. XX, traduzindo numa frase muito do que signifique o fotografar.





Um olhar. Dura um instante, mas é capaz de transmitir coisas que páginas de texto não seriam capazes. Um pensamento não está apenas no discurso de alguém, na maneira de se portar, mas também numa visão. “Sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura” disse Fernando Pessoa na voz de Alberto Caeiro. Nossa concepção de mundo está também na forma que vemos e até onde vemos. Duas pessoas não olham para uma mesma paisagem e identificam a mesma coisa. Olhamos para algo e o encaramos da maneira que fomos educados a ver; interpretamos a imagem a partir de todo um contexto ao qual estivemos inseridos e acostumados. A foto de uma quimera não é simplesmente a imagem de uma flor; isso depende de quem vê. Ela pode ser uma novidade para aquele que desconhecia essa espécie, mas pode ser também o símbolo da infância de alguém que brincava em jardins cheios delas. Da mesma forma, a imagem de um mendigo no meio da praça pode ser tanto algo extremamente agressivo, como algo interessantemente revelador. Talvez esteja aqui a grande magia da fotografia: ela não é apenas o registro de uma imagem, mas captação do ponto de vista de alguém, da memória do ser humano.
*
Desde a sua descoberta a fotografia se desenvolveu muito no que diz respeito a tecnologia e conseqüente facilidade no acesso de forma a tornar-se um dos meios mais populares de comunicação. Não se escrevem mais diários, nem se enviam cartas; agora, publicam-se álbuns em sites de relacionamentos, fotoblogs, etc. Porém, esse acesso irrestrito a uma máquina fotográfica não significa que multiplicaram-se os fotógrafos no mundo: “fotografar é saber ver” costuma dizer o fotógrafo Cristiano Mascaro. A visão é um sentido que como qualquer outro precisa ser treinado. E a câmera é um grande meio para apurá-lo. “A maioria das pessoas não olham. Elas apertam o botão [da máquina] e identificam [o que vão fotografar], mas procurar o sentido além imagem, poucos fazem. O que os olhos procuram? Essa é a pergunta.” Disse Cartier-Bresson, fotógrafo considerado o pai do fotojornalismo moderno. Bons olhos fazem do fotografar um meio de captação da história, eles percebem em cenas aparentemente simples uma mensagem que é capaz de sintetizar todo um período. Como a famosa capa da National Geographic onde mostra a foto de uma refugiada da guerra do Afeganistão ao tempo da guerra fria ou as fotos dos cara pintadas nas “Diretas já” aqui no Brasil.
*
Estão sendo comemorados 170 anos do anúncio da descoberta da fotografia e é esse um bom momento para dar-se um convite a ver através de diferentes olhares e perceber como há tantos mundos distintos num mesmo lugar. São várias as exposições a serem assistidas, vários os livros a serem abertos e também a chance de parar e analisar qual é o seu próprio “ver”.


OLHARES



Eventos em São Paulo_SP

A FNAC, para comemorar seus 10 anos no Brasil, está lançando “Encontros com a fotografia”, conjunto de livro de entrevistas, livro de fotos e DVD de documentários com o que ela considera ser parte significativa da fotografia contemporânea brasileira. Ainda estará expondo fotos dos fotógrafos brasileiros Arnaldo Pappalardo na FNAC Morumbi (de 26/10 a 23/11); Leopoldo Plentz na FNAC Paulista (de 26/10 a 23/11) e Cristiano Mascaro (de 21/09 a 17/05/2010). Grátis

Onde SESC Santana
Ateliê SESC: Programação especial que oferece uma série de oficinas e cursos com o objetivo de apresentar ao público de todas as idades, atividades de iniciação ao universo das Artes Visuais; as técnicas, materiais e suportes, bem como o potencial expressivo e de linguagem. Em novembro: Processos fotográficos artesanais com Kenji Ota
Dia(s) 28/11, 29/11 Sábado e domingo, das 14h às 18h.
Vivência de técnicas artesanais de fotografia, que pouco mudaram desde o séc. XIX. O fotógrafo paulistano Kenji Ota consegue obter uma materialidade rara em seu processo de produção imagética. Experimentações com cianótipo, marrom van Dyck etc. Quiosque.Grátis


Onde: SESC Pompéia
De 17/11 a 10/12. Terças e quintas, das 19h às 21h30.
Oficina: Através da construção de cenários em miniatura, a oficina irá trabalhar sob o conceito de adaptação dos equipamentos domésticos de iluminação e fotografia digital no desenvolvimento de personagens e paisagens voltados para a criação de cenas ficcionais. Orientação: Letícia Ramos e Nino Cais. Duração: 8 encontros. Inscrições a partir do dia 3 de novembro. Grátis.


Onde: SESC Pompeia
Estudos so Olhar: Relatos de Trajetória – Alexandre Sequeira
Dia 21/11, Sábado, das 15h às 17h30.
A pesquisadora e crítica de fotografia Simonetta Persichetti entrevista o fotógrafo paraense Alexandre Sequeira sobre seus processos e procedimentos artísticos, coletivos e individuais. Grátis

Onde: SESC Pinheiros
Exposição: Henri Cartier-Bresson
Um dos mais importantes fotógrafos do século XX, Bresson buscava incessantemente momentos harmônicos. A exposição e demais atividades que integram a mostra, nos revelam frações mínimas de tempo em que forma e conteúdo atingem a máxima expressão no visor da câmera
Organizada por Eder Chiodetto, a mostra é composta por 133 fotografias pertencentes ao acervo da Agência Magnum, fundada por Cartier-Bresson em 1947. Em 45 anos de carreira, Cartier-Bresson criou um estilo único e tornou-se pai do fotojornalismo contemporâneo, ao lado de Robert Capa. Espaço de Exposições, Térreo e Sala de Oficinas, 2º andar
De 17/09 a 20/12, Terça a sexta, das 10h30 às 21h30.; sábados, domingos e feriados, das 10h30 às 18h30. .

Onde: SESC Pinheiros
Retratos Urbanos
Dia 06/11, Sexta, às 20h.
A fotografia e a cidade são os temas principais dessa conversa com o fotógrafo Cristiano Mascaro. 200 vagas. Acesso livre até o limite de vagas. Sala de Leitura, 2º andar.


Para Assistir:

Henri Cartier-Bresson. Documentário: L'amour tout court (2001) de Raphael O`Byrne.

Câmara Viajante. Documentário de Joe Pimentel.
O documentário registra o ofício de cinco fotógrafos populares - fotografia ambulante, lambe-lambe, retrato pintado, monóculo - que resistem à proliferação das câmeras digitais e continuam registrando as manifestações religiosas dos romeiros de Juazeiro do Norte e Canindé.

RECONSTRUCÇÃO

Carol Mansinho


Cai flores
Cai histórias
Cai fantasias

Dos escombros criados surgem novos ares
Pestes e desditas
A raiz germinado
um futuro já demolido

Cai pedras
Cai sombras
Cai pirulitos

A gritaria só não basta
Os urros estremecem
Desabo a mim marchando em queda livre

Cai portas
Cai janelas
Cai íntimas ilusões

Desesperar é uma forma de expectativa
Não mais frustrada
Não mais medida

Cai o chão
Cai a gravidade
Cai a queda

De tudo não há mais nada
E do vazio virá a matéria
Que encherá o coração

Cai fantasia
Cai a TV
Cai sensação

Desaba aquilo que se pretendia edificar
Ergue-se a mágoa;
Que fará chorar;
Que fará recomeçar.

Hora do rush


Foto e texto: Carolina Mansinho




Escurece o firmamento ante as luzes da cidade



As estrelas estão agora no chão



Cada passo parece andar mais rápido que o carro



E o passo é livre, não existe contramão



A sirene, a buzina, o caos a música



Isso enlouquece e fascina, estresse e pressão



Para que tanta gente, meu Deus!



Para que tanto carro!



Tanta pressa para seguir



Mas que segue para parar!

OLHAR II


Foto: por Carol Mansinho. Praça da Sé, São Paulo - SP.





É sempre bom parar e olhar a própria cidade. Ela pode ser bonita.

Cisma

Carol Mansinho
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Sua perturbação vinha de uma semana cheia de contratempos. Parecia que o mundo queria lhe provocar! Estava se sentindo de uma forma que tudo soava como se estivesse sendo ridícula. É certo que as pessoas olhavam para ela da mesma forma de sempre, mas é óbvio que agora fingiam, pois era só ela dar as costas e pronto: estavam lá, todos eles, rindo dos erros dela, dos medos dela, dos botões da camisa dela, de tudo!

Já estava de saco cheio; resolveu então comprar um copo de café e foi passear no museu. Pensou que lá ela estaria em paz, pois o centro das atenções seriam as obras e não ela. Ficou alegre ao ver que ninguém notou sua presença. UFA! Poderia caminhar despreocupada.

Pena que sua alegria durou pouco; assim que começou a olhar as obras do museu, notou que elas a observavam. Não, não, não... até elas! Percebeu isso quando viu aquela múmia petulante fechando os olhos e se encolhendo toda por conta do incômodo que sentia diante da presença indesejada. E aquela estátua? Com a mão na cintura e a outra erguida como se pedisse para os deuses: Alguém no Olimpo?! Deêm alguma luz para essa moça porque ela tá apagada.

Aquilo já era demais! Irritada, foi para outra sala do museu onde havia um enorme aglomerado de pessoas. Entre elas, viu uma mulher que a encarava de forma fixa. Já tinha desistido da procurada paz e aceitou ser observada, quando notou que, além de a encarar, aquela mulherzinha lançava contra ela uma risadinha infame.

A risadinha não!!!! Ela podia aceitar qualquer coisa, menos aquela risadinha cínica! Não pensou duas vezes: Lançou contra a mulher seu copo de café para que ela soubesse que não se ri dessa forma para ninguém.
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foto: Mona Lisa de da Vinci, fonte Google.

Ele e la ele

Eric Barreto

Ele estava no bar sentado à ponta da mesa. Olhava o copo balançar atentamente e viu revirando no fundo a imagem do Demônio que lhe acenava.
O Capeta lhe disse: "toma mais essa e bora botar pra fuder!"
Ele tomou.
O Diabo lhe disse: "bora, bora porra, botar pra fuder!"
"Que obsessão por botar pra fuder? Voce é paranóico misera!?" disse ele.
"Peitinhos, mamilos, coxas, pescoços tatuados, bucetinhas, xoxotinhas e cus, cus. BORA BOTAR PRA FUDER POORRAAAA!!!" disse o la ele.
Entediado ele disse: "sim, vamos botar pra fuder! Vou arrumar umas camisinhas"
"Desgraça de camisinha, o que é gostoso é a sujeira, o resto de fezes. Quem gosta de buraco frio é esquimó!" afirmou o encardido.
"Ok, vou liso" disse ele.

O lá ele esfregava as mãos:

hé hé hé ... hé hé hé ...

hé hé hé ... hé hé hé ...

hé hé hé ... hé hé hé ...


Com bar cheio ele levantou-se. Seu pênis encontrou abrigo no copo húmido.

Salvador, 02 de Julho de 2009

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Querida Carol,

Foi muito bom te encontrar aqui em Salvador, e como não seria? Mas desta vez aconteceu numa data que tem algum tipo de relevância histórica. De fato, tem bastante relevância para esta terra que tanto estima e até para o nosso país, digo isso mesmo não sendo eu um venerável patriota, como é de seu saber.

Ao confessar sua ansiedade e suas noites perdidas à espera desse momento lembrei-me do quanto foi interessante chegar à sua cidade, admirar seu povo e sua dinâmica de metrópole incessante; sua correria e sua civilidade diferentes das daqui. Não menos importante, mas também não mais.
Também matutei que ao chegar, depois de ter visto muito do azul do Oceano Atlântico, no sentido Sul-Norte você avistou de cima esta cidade península, em forma de V, com dois litorais, um de mar aberto e o outro banhado pela baía de Todos os Santos – no dizer de Gil, de um lado Iemanjá e do outro Senhor do Bonfim - além de uma linha acompanhando à sua esquerda que é a Ilha de Itaparica. Viu o miolo da cidade, Brotas, Cabula, Avenida Bonocô, Cajazeiras, Itapoã, São Cristovão e pousou, já que possui asas, no Aeroporto Dois de Julho.

Acredito que pra você tenha sido muito prazeroso passar este Dois de Julho aqui na Bahia (e foi, pois felizmente pude ver isso em seus míopes e embriagados olhos verdes), mesmo impossibilitada de ir à Praça Dois de Julho (Praça do Campo Grande) chorar no pé do Caboclo, ou comparecer na cidade de Cachoeira, que por lei se torna capital da Bahia nos dias 25 de junho em reconhecimento à sua liderança e resistência, ou ter ido ver as festividades de comemoração da Independência da Bahia, e do Brasil na Bahia, no histórico bairro de Pirajá, local onde foi travada batalha de maior importância e onde uma Corneta transformou-se na arma mais eficaz; fato curioso, inusitado e até humorado que engorda o imaginário da noção de baianidade.
Em verdade, a palavra atribuída a este acontecimento é muito forte e condizente com as concepções da época, no entanto ela hoje assume uma carga semântica tal que permite tornar-nos desejosos de muitas outras conquistas além das obtidas a Cento e Oitenta e Seis anos atrás. Que emancipação a soberana nação brasileira garante aos milhares de descamisados, famintos, marginalizados e dependentes das esmolas, pequenos furtos, serviços escusos e todo tipo de sujeição que a vida em miséria é capaz de causar?
Esta é a realidade encontrada diariamente em quase todas as esquinas desta cidade que você tanto admira, do Pelourinho à Barra, por toda a Cidade Alta e Baixa. Esta realidade que se nos faz mal faz muito mais a aqueles aos quais quase não enxergamos; realidade que está espalhada por todo o país e não menos presente em sua cidade, como pude constatar ao aí chegar.
Mas, falemos de coisas boas, falemos aqui como uma necessidade de pintar no ar o sentimento de liberdade que nos assola quando viajamos, quando chegamos para visitar pessoas que amamos, quando visitamos ou revisitamos lugares, quando assistimos ao Sapato do Meu Tio ou ao Mistério do Samba, quando entramos nos estádios do Pacaembu ou Pituaçu, quando apreciamos o MAM ou o MASP, quando saltitamos pelas avenidas Paulista ou Sete de Setembro; e vamos de um lado para o outro, livres (e a liberdade não seria apenas a própria ilusão de liberdade?), sem obrigação de satisfações e sem tomar conhecimento de convenções ou impossibilidades, promovendo encontros cinematográficos, ficando bêbados...

Nunca estive em São Paulo num Dois de Julho, mas esta data me faz lembrar um dos locais lá apreciei, pois hoje, como você bem sabe, é o dia da Independência da Bahia e, ao falar em independência lembro-me do museu da USP, ou melhor, o Museu Paulista, também conhecido como museu da Independência ou do Ipiranga, que é provavelmente uma referência para os estudos e para a memória das lutas pela Independência do Brasil e que tive a oportunidade de visitar em minha primeira ida a seu estado. No seu centro, acima da escadaria de acesso ao andar superior, há o reconhecimento a diversos estados de diversas regiões brasileiras: São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Goiás, Amazonas e outros, e não me parece barrista dizer que a ausência da Bahia entre os estados que são reconhecidos como grandes redutos de resistência e de protagonismo na Independência brasileira é uma imperícia e uma negligência. Aliás, a única citação referente a Bahia é o reconhecimento a Maria Quitéria, exposta mais como um símbolo que contribui à reiteração das atuais causas feministas que como personagem representativa da resistência baiana. É também de se espantar como a maior Universidade do Brasil, com orçamento anual contado em bilhões, nascida após a Guerra de 1932 com o propósito de conhecer o Brasil (o desconhecimento do Brasil foi uma das principais causas apontadas por intelectuais partidários do Movimento para a sua derrota) negligencie e assuma esta postura de ignorância para importante episódio da história da Independência do Brasil, além de se tratar de uma das poucas lutas de caráter estadual no país que não teve por objetivo reivindicações separatistas ou disputas pelo governo central.

Reitero desde já que suas vindas serão sempre bem-vindas - por mim e por todos aqueles que têm a tácita autorização (ou cara-de-pau) de carinhosamente te xingar -, que saudade faz ponte aérea, e que a cidade em forma de V de Venha estará sempre aqui a te convidar. No entanto, sendo eu sabedor de seu grande desejo de retornar a residir na Bahia não quero usar de palavras como catalisador ou discurso de incentivo à sua batida em retirada, aliás, é reconhecendo a beleza de sua atual cidade, não menos bela mas também não mais, que te digo novamente: aproveite tudo que ela tem a te oferecer. E, no mais, sendo muitos o mundo é um só, devemos aproveitar cada detalhe, seguindo o exemplo de baianos como Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil:


São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor...
... Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito”
.
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
.
Aqui prá vocês!Eu sou da Freguesia do Ó!”

Quem sabe um dia eu não passo um Nove de Julho contigo aí?
Sempre de braços abertos, um grande e forte abraço, seu
Ericão





* Imagem do Monumento em Homenagem ao Caboclo na Praça Dois de Julho, Campo Grande, Salvador – BA (Google)
** Imagem da Fachada do Museu Paulista da USP no Parque da Independência, Ipiranga, São Paulo – SP (por Eric Barreto)

Médicas

Eric Barreto

Médicas adoram a ilha
Todas as médicas que são amigas minhas vão para ilha
O que tem na ilha? Namorados?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram carros
Todas as médicas que são amigas minhas têm carro
Qual a vantagem do carro? Comodidade?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram pessoas saudáveis
Todas as médicas que são amigas minhas vivem com pessoas saudáveis
Qual o problema dos raquíticos? Falta de força?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram ser amáveis
Todas as médicas que são amigas minhas são amáveis
Por que ser tão amáveis? Vocês amam alguém?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram pacientes fieis
Todas as médicas que são minhas amigas exigem fidelidade
Por que ser tão fieis? Vocês são fieis?
Eventualmente sim, respondem elas

Médicas adoram ter casos com outros profissionais
Todas as médicas que são amigas minhas têm casos com outros profissionais
Por que outros profissionais? Não dá pra confiar em médicos?
Eventualmente sim, respondem elas. Eventualmente.

Sangria desatada

Flamarion Silva

Acho que estou prenha. Contando a data, hoje faz um mês e doze dias. Ainda não contei para ninguém. Nem mesmo para o Jefe, que é o pai. Acho que a primeira pessoa a saber vai ser a Jéssica, que é minha melhor amiga e vive dizendo:
– Não tem outra, a madrinha serei eu. Nós, que somos as maiores amigas... Madrinha é que nem mãe. Tipo assim uma segunda.
Parece que estava adivinhando, a Jéssica. Deve ter sido a boca daquela ordinária.
Hum, mainha vai ter um troço quando souber.
– Vá estudar, vá estudar. Quer vida igual a minha? ela vive dizendo. Conversar, conversa mesmo, de mãe para filha que é bom... nada. Só sabe mandar estudar, estudar.
– Se estudar é bom, por que você não estudou, mainha?
– Olhe a ousadia! Olhe a ousadia! Não tem amor aos dentes?
Mainha fica nervosa fácil, mas depois de qualquer atrito mainha dá para cansar e fica triste que eu me arrependo. Acho que ela está ficando velha muito rápido. Não são os anos, deve ser a vida dura que ela leva. Uma vida, mainha. Também, cinco filhos. Painho abusa, diz que deu a ela cinco diplomas, que ela é uma mulher formada e reformada. Mas estudo estudo que é bom, nenhum dos dois têm. Ainda bem que nunca se separaram. Juntos desde o início. Minhas amigas quase todas filhas de pais separados. Dizem que sou anormal, que minha família é das antigas. Confesso que às vezes até penso que seria bom se mainha arranjasse outro homem. Mas penso só por pensar. Deus me livre! Mas talvez assim com um amante, vamos supor, ela se arrumasse mais, cuidasse do cabelo, da pele desidratada, usasse umas roupas transadas. Só vive no desprezo. Painho também eu deixava arranjar amante. Ah, não, não, a outra ia explorar ele. E mainha ia sofrer demais, ficar doente e morrer de amor, ou de fome.
Que doideira essas idéias minhas. Olhe aonde vim parar. O pensamento da gente parece que tem graxa, corre solto.
Ai, meu Deus, e agora o que é que eu faço? Melhor dormir. Amanhã eu penso nisso, como diz aquela mulher linda do filme E o Vento Levou. Dizem que parir dói, pois já começou a doer. Ai. Melhor dormir.
– Bênção, mãe.
– Deus lhe dê juízo.
– Bênção, pai.
– Seu pai já está dormindo.
– Mainha.
– Que é, Clarice?
– Parir dói?
– Muito. Dói até agora. Vá dormir que amanhã acorda cedo para a escola.
– Boa noite, mainha.
Neste quarto eu e Janete num beliche. Eu durmo embaixo porque sou a mais velha; também, Janete chorou tanto querendo ficar em cima que mãe deixou. No outro beliche dormem o Nico e o Celivaldo. O nome de Nico é Nivaldo, que nem o pai. Ele é mais velho que o Celivaldo, por isso dorme embaixo também. No outro quarto, painho, mainha e Ronaldinho, que fez dois anos em maio. O Ronaldinho dorme no meio de pai e mãe. Às vezes ele chora muito de noite que ninguém dorme.
– Acho que não vinga esse menino, pai disse um dia.
Mãe ficou brava com pai. É que o Ronaldinho é muito magrinho e só anda com o nariz catarrando. Uma vez ficou tão entupido que mãe teve de chupar o catarro do nariz dele. Ela foi no médico e o médico passou uns remédios que pai não teve dinheiro para comprar. Voinha foi que fez uma xaropada de folhas e agora ele está bem melhor, graças a Deus. Ai, ai, ai.
– O que foi, Clarice?
– Ai, mainha, umas dores no pé da barriga.
Mainha se levanta e vem ver o que eu tenho. Penso em contar tudo. Todo mundo diz que mãe é mãe; pai é que não entende e quer logo bater. Ai. E ela já passou por isso. Ai, Meu Deus, o que é isso agora?
Sinto um jato quente escorrer de minha vagina. Meu Deus, eu devo estar abortando. Não posso esconder mais, não posso.
– Mainha?
– O que é? Onde está doendo?
– Ô, mainha...
– O que é, minha filha? Vamos, pare de chorar que logo passa.
– Mainha...
– Célia! o pai chama do outro quarto.
– A Clarice está com umas dores.
Preciso contar logo o que está acontecendo.
– Mainha... eu, eu, eu estou pren...
– Está o que, menina?
– Estou prenha. E sangrando.
Pronto. Contei tudo. A cama manchada de sangue, a calcinha encharcada de sangue.
Mãe leva um susto com a notícia. Depois levanta o lençol e leva outro susto.
– Meu Deus! O que foi que você fez, menina?
– Eu não fiz nada, mãe; juro.
Mãe pensa que eu provoquei um aborto. Mas eu juro que não fiz nada disso, além do mais, minha religião não permite; é pecado criminoso.
– O que foi, Célia? pai pergunta, chegando na porta do quarto.
– Sua filha está grávida, mãe diz assim, muito segura.
– Está vendo, está vendo, Célia? Bem que eu disse que essa sua filha andava muito solta. E quem é o pai, hein, quem é o pai?
– Ora, Nivaldo, só pode ser o namorado dela, não é? Quem mais podia ser? Será possível que você nem sabe que sua filha está namorando?
– Namorando, namorando, no meu tempo namorar não embuchava ninguém.
– Pois é, agora os tempos são outros, mãe diz, me ajudando a ir até ao banheiro e providenciando ajuda.
– Vai, Nivaldo, vai, vai ver se Roberto do táxi está em casa.
– Táxi, táxi, agora é táxi. Não soube procurar sarna, agora se coce, pai diz na minha cara, muito bravo. Não vou providenciar nada, vou é dormir.
Pai sai e volta dizendo que o táxi está esperando.
No posto da VIII, que é mais perto e atende todo mundo que não tem convênio médico, o médico me olha logo com cara de mau. Todo mundo pensando que eu provoquei um aborto.
– Mas que droga! Eu não já disse que não provoquei aborto nenhum?
– Calma, minha filha, calma.
Minha mãe é a única pessoa que me compreende.
– Boa noite, diz a médica novinha que se aproxima da maca onde estou deitada.
– Boa noite, dizemos todos, educados, na esperança de sermos bem tratados.
– A senhora não é dona Célia, que mora na X? a médica pergunta. Minha mãe, na sua simplicidade, responde:
– Sou. É verdade, estou lembrando da senhora. A senhora é Suzana de Arlete, que morou na X. Estou certa?
– Isso mesmo, ela diz. Nos mudamos para o Imbuí. Meus pais se separaram, o que foi bom para eles: já não estavam se entendendo; agora estão mais felizes que nunca. Minha mãe ainda mora no Imbuí, mas eu moro com meu namorado, na Pituba. E vocês, alguma coisa em que eu possa ajudar?
– É minha filha Clarice, que está abortando, mas o doutor já veio ver ela. Fez uns exames e...
– Meu Deus, então é sério; começou cedo, hein, Clarice. Bem, tenho que ir. Até logo e se cuidem.
A médica sai e minha mãe se vira para mim.
– Viu, Clarice, viu? Estudou. Está aí, moça bonita, formada, com apartamento na Pituba, na Pituba!Já pensou? E você? Nem acabou os estudos e já metida numa encrenca deste tamanho. Deus que me perdoe, mas que este aborto lhe sirva de lição. Moça tão nova e já méd...
– Está bem, mãe, está bem; já entendi.
O doutor aparece e diz que eu já posso ir para casa. Que o sangue todo não é aborto. Que as dores são do sangue da menstruação, que atrasou. Que tudo isso é muito normal. Que eu tome trinta gotas de Elixir Paregórico. Ai, que alívio!
Agora estou em casa. Todos dormem, mas eu estou na cama, acordada, pensando que daqui a pouco tenho de me levantar para ir à escola.
Pituba. Já pensou? Pituba!
E médica!

APERTE O BOTÃO SE QUISER

Carolina Mansinho



Eu lembro de ficar olhando para capa desse CD quando eu era criancinha, aliás, CD muito bom. Mas foi sempre a capa que me atraiu de verdade. No meu pensamento de menina de uns 7 anos de idade, eu imaginava esse liquificador em cima de um balcão que ficaria num lugar bem movimentado, como a rua, por exemplo. Existiria então uma placa perto do liquificador dizendo: "APERTE O BOTÃO SE QUISER" e as pessoas passariam, e leriam aquele aviso. Aí, elas começariam a olhar umas para as outras como quem pergunta: VOCÊ VAI? Muitas poderiam ficar horrorizadas: coitado do peixinho! Outras, poderiam cair na gargalhada imaginando o bichinho sendo triturado; outras, ainda, impulsionadas pelo consentimento dado por alguém para se fazer uma maldade, iriam apertar o botão para satisfazer um desejo escondido que até então não tinham tido a coragem de exteriorizar...

Agora que estou mais crescidinha, percebo que tinha visto no peixinho a realidade de muito ser humano por aí. Imaginação de criança é fogo.

Olhar



Foto: por Carolina Mansinho (Casa Batlló, prédio projetado por Gaudí. Barcelona - Espanha)


CONFLITO

por Carol Mansinho
Apenas palavras, pessoas apenas,
Há tanto falado. Há pena.
São tantas mentiras, delas centenas.
E elas aceitam-as, serenas.
Ensurdecem à verdade, almas pequenas.
*
Para quem ilude, ovação.
Para quem sacode, sanção.
*
E nós aceitamos, tolos.
Como se pudessemos nada fazer,
Dizemos: somos fracos, consolo
Para sentados permanecer.
*
Para quem adere, prêmio.
Para quem insurge, rolo.
*
Há de existir verdade no dito,
Não seja indiferença ao indivíduo.
Não guarde o discurso mal-dito,
Mas o gesto escondido.

Quarta-feira, 18:00 hrs.

Foto: por Carol Mansinho (tirada num dia muito doido, diga-se)

por Carol Mansinho


Sampapão
Samba e pão
Lei do Circo
Vida? Não.
Trabalho, Bi! Bi!, Trabalho.
Na sorte, quem sabe rola um baralho?!
"Ai que saudade eu tenho da Bahia."

(Inspirado em scrap enviado uma vez por Liz Novais Dinada Marixqueira. Orkut tem seu valor.)

Para constar: Citação de Caymmi.


verbo caminhar

Eric Barreto

gole
engole


mole
b
ole

guarda
aguarda

vida

ida

contra-mão
não

volta

envolta



solidão


.

Caminhada

Carol Mansinho

A caminhada tem sido longa, eles estão claramente cansados. Depois de tantos obstáculos, os músculos quase não respondem mais.
Mas insistiam.
- Disseram que é linda a chegada!
- Sim, mas parece não chegar nunca...
Nem teve força para retrucar com outra frase entusiasmada, afinal, concordava com a demora.
E o cansaço chegou a tanto que as ideias começaram a turvarem-se, até que foram esquecidas.
- Não vejo a hora de chegar! Falavam antes.
- Será que falta muito para terminar? É a pergunta de agora.
Até que chegaram; um breve sorriso, uma troca de olhares. Rápido comentário:
- Terminamos.
A fadiga deixara-os esquecer que ali era a chegada e não o fim.

Na Roça

Por Scheckter Barreto

A mãe se sentia incomodada com a casa...

por Carol Mansinho

A mãe se sentia incomodada com a casa...

Derruba!

A casa tá velha, sem serventia.

Derruba!

Olha como tá feia, só tem velharia.

Derruba!

A gente constrói outra com mais mordomia.

Derruba!

Vamos mudar tudo, do sofá a alvenaria.

[o filho, questionador.]

Mas mamãe, por que não reforma?

Nota de Esclarecimento

.
Escrever... um momento analítico. A gente escreve e põe pra fora, põe pra fora botando pra dentro.
Ler... um momento meditativo. Um desligar de si consciente de tudo em si. Um movimento de ir e vir simultâneo, concumitante, incoerente e inexorável.

Somos a imersão na linguagem, já diz a teoria psicanalítica. Dançar, cantar, tocar, gesticular, pintar, rodar... e ler/escrever. É justamente aí que realmente somos? E o que somos?

Essas perguntas talvez não importem, é provável que não importem, mas é sempre bom lembrar Pessoa:

"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: 'Navegar é preciso, viver não é preciso'.
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar minha vida; nem gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder com a minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e a contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa raça."

Durante dois meses e meio não houve publicação no Blog.
Periodo de recolhimento de material e materiais.

Uma coincidência nada impressionante, mas surpreendente, chegou até nós, em súplicas, juntamente com os materiais: Que seja mantido o anonimato!

Que Berro!!! Que Berro Humano!!!

É quase inimáginável pensar que Guilherme Gentil diria isto, mas a vida é cheia de pequenas belas surpresas.

Deixamos aqui expressos agradecimentos pelos belos textos a Giuliana Lima e Flamarion Silva (o único home nessa porra!!!) e a Sofia Senna, Marcelo Bispo, Gustavo Menezes, Daniel Velloso, Fernando de Lucena, Guilherme Gentil; pelas palavras e/ou pelas prometidas.

Respeitaremos os pedidos. Será resguardada a autoria. O que aparecer sem autor ou com pseudônimos é de um desses nomes acima. (essa perversidade temos que fazer!)



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G1

Sim, fui à casa dela, conversinha, mais conversa, como fala a diaba! foi ao banheiro. um pouco de espera, assim ao abrir da porta, eu com a faca, minha querida faca, primeiro no pescoço, já não podia gritar, e pelo resto do corpo, arranquei sua roupa, joguei-a no chuveiro, que expressão interessante tinha! passei tranquilamente pelo porteiro. me acharão rápido. o chato pe virar notícia na Globo, mas talvez meu caso nem seja tão vendável

"baseado em fantasias reais"

Para confirmar seu voto digite o 3...

Sofia Senna
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É, e maaaaaaais uma vez é só começar aquela musiquinha “se você soubesse quem você é, até onde vai a sua fé..” que a família toda se junta em frente à TV para saber qual dos nossos novos heróis nacionais vai pro paredão essa semana. “Ai Bial, eu vou votar em fulano, mas, tipo assim, não é nada pessoal, sabe?” Sabemos, sabemos...
O BBB é realmente uma idéia genial, mas, pra mim, ainda faltam alguns ajustes. E basta assistir ao Jornal Nacional, aos escândalos do governo e às promessas e especulações sobre possíveis nomes para o cargo de próximo presidente da nossa querida nação que a idéia surge: Precisamos de um Big Brazilian Bosses!!!
Fecharíamos em uma casa todos os candidatos à Presidência da República durante 2 meses. È claro que a casa não estaria em condições muito boas, talvez até com risco de desabamento, que é para eles terem que rezar para não chover, assim como milhares de brasileiros. A comida também seria racionada, uma cesta básica quinzenal para sentirem um pouco do drama da fome. E nós eleitores, é claro, acompanharíamos tudo, observando atentamente como cada um se sairia. (E a Globo nem precisaria gastar fortunas para enfeitar quartos temáticos com desenhinhos nas paredes, podendo até reverter a quantia para obras sociais).
Essa novidade de Lado A e Lado B também poderia ser aproveitada, teríamos a Esquerda e a Direita. Assim, no lugar de provas por “estalecas”, ou algo do tipo, teríamos debates diários sobre temas urgentes, além disso, cada candidato teria um tempo para explicar nos mínimos detalhes seu plano de governo e o que pretende fazer para pô-lo em prática. Já pensou? Nada de assistirmos mais àqueles discursos que estão sendo nitidamente lidos no ar. A ordem é a espontaneidade! Seus advogados e “marketeiros”, obviamente, não poderiam ser consultados durante a estadia na casa. Uma vez por dia os candidatos receberiam telefonemas de algum eleitor indignado ou solidário, estando sujeito a multa aquele que se recusar a responder, com valor estipulado pelos próprios eleitores através de votação dos internautas.
Aos domingos, o povo brasileiro entraria em ação eliminando um dos candidatos pelo telefone. A Central Telefônica Eleitoral só confirmaria a votação após verificar a veracidade dos dados do título de eleitor. O último a permanecer na casa seria o novo presidente do Brasil!Finalmente teríamos uma eleição transparente e leal, além de um programa bem mais útil no horário nobre televisivo. Ou você prefere ficar ouvindo as mesmas propagandas políticas, cheias de pessoas bondosas, bem-intencionadas e preocupadas com o bem estar da população, enquanto uma dúzia de pessoas se submete a uma prova super inteligente para ganhar o maravilhoso anjo da semana? Porque a eleição, assim como o BBB, não acaba quando termina. E 4 anos são bem mais longos que 3 meses.
(baseado em texto de Rita Lee)

Um Caso Antigo

Flamarion Silva

Não vou afirmar que havia sentimento. Apenas ficando, como dizem os jovens de hoje. Ela também nunca demonstrou amor rasgado por mim. Talvez quisesse também só ficar. Mas olhe a tentação em que o diabo nos meteu. A sua madrinha, não a do diabo, a madrinha da moça, deu-nos a ocasião para pensar que nosso amor era imenso, e tudo simplesmente por ter viajado e deixado a menina sozinha em casa. Tanto bastou para que ela e uma amiguinha armassem um encontro naquele recinto à noite. Convocou-nos, a mim e ao Luciano, para que lá estivéssemos depois de a luz do motor apagar. Foi ponto frisado não deixar ninguém nos ver e, para garantir o sucesso do investimento, tínhamos de ir pelo fundo do quintal.
A Luciano e Zelda coube a cozinha. Eu e ela ficamos com a sala. Percebes como éramos inocentes? Havia dois quartos na casa. Mas, que fazer? A inocência é assim mesmo: um descobrir natural das coisas, sem malícia nem cálculo, um ir na correnteza da vida. Fomos, do corredor para a sala, do encostados na parede para o chão, do chão duro e frio... Dureza e frieza do chão que nos lembrou da cama macia e quente. Por favor, senhor leitor, não vá pensar que essa idéia saiu de nossas cabecinhas, percebeste que a necessidade foi provocada pelo desconforto a que o chão nos acometia. Olhe lá, hein, não te precipites no julgamento. A necessidade nos deu o quarto.
A cama era boa. A lamparina, pendurada num prego, foi regulada para menos. É que a chama tremeluzia e desenhava sombras na parede, dava medo, por fim apagamos, não a nós, a lamparina.
Estávamos bastante acesos; pra falar verdade, pegávamos fogo, e, talvez por isso, a impressão de o fogo já ter queimado nossas roupas.Queimou-as. O vestido voou longe, foi cobrir os olhos de um São João do Carneirinho que insistia em nos espiar na escuridão.
Ei-la, a moça, nos seus dezesseis anos, irresponsavelmente nua e linda sob a luz da noite que penetrava num espectro através de uma telha de vidro. O corpo moreno, que cheirava tão-somente à química que se formava sob sua pele, embriagava-me o desejo. Decerto que a possui tonto. Tanto foi que, no outro dia, curtindo a ressaca de uma noite de amor, arrependi-me da irresponsabilidade. Ora, meu Deus, virgindade era coisa preciosa por aquele tempo e por aquelas bandas. Que tinha eu de ir fazer mal à menina? Resultado: o pedir cuidado na discrição era pura arte, arte inocente e natural mas arte; ou talvez medo. Assim que a madrinha voltou de viagem, a mocinha contou-lhe tudo. Meu pai foi inquirido pela parte ofendida, assim meio discretamente, o caso não podia espalhar, a menina ficava falada, chamavam-na de furada, era um escândalo. Meu Deus, que vergonha! E agora? Que providência tomar?
Meu pai providenciou-me vermes, disse que eu estava empestado e tinha de viajar. Precisava tratar-me. Viajei.
Hoje, já curado da verminose, repensando este caso, ocorreu-me lembrá-lo com carinho, é que me deu pena, soube que ela não deu sorte na vida. Casou-se, mas assim que o safado descobriu-lhe rapariga, furada, disse: quero não! Largou-a. Outros homens também não a quiseram, só para “ficar”, assim como eu a quis.

Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Selo Letras da Bahia, 2006).

Sinal de Vida

G2
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......De repente, num estalo em meio a pensamentos difusos, sem importância, eis que ele acorda, sobressaltado, como quem dá um sinal de vida após morto no tempo, no espaço.
......Acreditou ver sua vida passando por seus olhos como num flashback: as cirandas de roda na escola, as traquinagens de infância, o primeiro beijo
, a primeira discussão após o “sim” no altar, as primeiras sílabas de seus filhos.
......Deparou-se, somente então em consciência, com a indagação surreal de todos os dias: “Afinal, quem eu sou?”. Surreal, porque parecia algo além do que sua realidade sugeria. Surreal, porque de fato nunca passou de um sonho a menção de que era um indivíduo, e não mais um número.
......Incrível como que, com o passar dos anos, perde-se este referencial. Quando se dá conta, é só mais um na fila do banco, esperando sua vez chegar.
......Ele viu-se desesperado ao concluir tudo isso na velocidade do pensamento, frações de segundo foram-lhe suficientes para apontar-lhe sua identidade: “Sou casado, pai de dois filhos, cidadão brasileiro, pago meus impostos, cumpro com horários, e aos finais de semana ligo para pizzaria para que tragam-me meu jantar.”
......Quando percebeu, o simples desespero havia transformado-se em um grande mal que lhe acometia, trazendo-lhe o remorso por tudo que deixara de fazer.
......E ao passo que essas questões atormentavam-no, tinha menos de um segundo para facultar entre pisar no acelerador ou no freio.
......As luzes da cidade nada clareavam seus pensamentos, mas confundiam e alucinavam-no como nunca. Numa calçada avistava o vulto de um rapaz – seria ele quem lhe tiraria o livre arbítrio? – a sua frente, a metamorfose do semáforo (nunca havia notado tanto sua presença até então). Um caminhão que partia em arrancada na rua concorrente. E o tempo, correndo contra.
......Nada reafirmava-se em meio a tantas transgressões repentinas.Mas uma certeza surgia: a de que tal evento viria a alterar vertiginosamente a órbita dos fatos.
......O verde deu lugar ao amarelo: sinal de que o tempo remanescente se comprimia. O rapaz, surgindo na penumbra da rua, deu um passo à frente: sinalizava sua intenção. O caminhão acelerava: sinal de que não esperaria. E o corpo começou a mandar seus próprios sinais: as mãos trêmulas, à espera do cérebro para governa-las; este aturdido, não era capaz de obedecer ordens – quanto mais envia-las.
......Na ausência de qualquer outro sentido, deixou por um momento ao sabor do acaso – e da quantidade exorbitante de adrenalina liberada. Seus olhos cerraram. Sua perna moveu-se, assinalando sua crucial escolha. Os pneus não chegaram a cantar (mesmo porque não os teria ouvido).
......E foi encomendando a própria alma que avistou, extasiado, o jovem ali em pé, ao seu lado.
......“ – O senhor está bem? Parece até que viu uma assombração! Se quiser, chamo ajuda.”
......Sorriu, e com a cabeça fez sinal de negação, afirmando estar tudo bem.
......Envergonhado de sua fraqueza, continuou o trajeto de volta para casa. Aquela certamente seria a maior de todas as lições que tomara naquela insólita noite.
......O que esperavam? Este cidadão por si só já era infeliz! Ao menos permitam-no chegar em casa para tomar conta de seus filhos.
......(E fingir que não é mais uma entre tantas “balas perdidas” que por aí perambulam).

Outro Momento

Esqueçam as críticas!!! Principalmente, esqueçam os críticos!
Tudo é belo! O Feio é belo!
Quem é que há de dizer o que é bom?
Se nos destinamos ao caos e nos sentimos embebecidos porque preocupação?
Seremos livres, cabe acreditar!

O auto-engano é um belo prazer,
Além dos sonhos nos faz sobreviver.
Se há crítica é por não terem eles vivido
Se há razão é por não ter havido divisa
O que nos resta é a vida
E a ela não há renuncia.

Um Momento

Eric Barreto

Eu tive um amigo na infância... sempre discordei dele, Getúlio, tinha uma vocação pra ditador.... sempre discordei dele.... ele se suicidou... acho que ele tinha razão!

Bossa Nova – Os 50 anos do silencioso grito de João Gilberto

Fernando de Lucena

Em fins dos anos 1950 as canções da Música Popular Brasileira não mais se identificavam com a juventude. A temática dor de cotovelo desse cancioneiro contrastava com os novos anseios – que pouco depois foram sintetizados na expressão “paz e amor” - e de temáticas mais leves e descompromissadas do jovem brasileiro. A busca por essa identidade musical se estendeu pela década seguinte, resultando numa revolução de diretrizes da MPB, calcada na expressão “bossa nova”, e representada por seu maior ícone: João Gilberto com sua interpretação silenciosa.

Os primeiros encontros de bossa nova se estabeleceram de forma bastante casual – em reuniões da classe média carioca - quando esta nova sonoridade ainda nem se sabia como gênero musical, apenas como a busca de uma nova forma de se tocar samba, ou mais além, de se fazer música. Como conta Tuzé de Abreu [compositor baiano, e flautista da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia], “Bossa Nova era uma gíria da época, como se dissesse assim, irado, ou legal, só depois que ficou sendo como o nome de um gênero”. A palavra bossa, no entanto, já havia sido utilizada na década de trinta, na canção São Coisas Nossas, de Noel Rosa, onde diz, “(...) O samba, a prontidão/e outras bossas, /são nossas coisas, /são coisas nossas (...).”. E em 1959, Tom Jobim descreveria João Gilberto como “Um baiano bossa nova” na contracapaca do primeiro disco do violonista

Apesar da estreia de João Gilberto em disco solo datar de1959, o cinquentenario da bossa nova tem como marco o lançamento do clássico disco de Elizeth Cardoso, Canção do Amor demais, de 1958. No disco, ela canta músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e é acompanhada pelo violão de João Gilberto. E foi com este disco, e a partir deste acompanhamento que, João Gilberto, tempos depois passou a ser conhecido no mundo inteiro como o “inventor” da batida da bossa nova, tendo na canção Chega de Saudade, o grande marco, e divisor de águas do genero, para muitos.

Sobre a canção-ícone da bossa nova, e a entrada do músico baiano no círculo bossa novista, Tuzé de Abreu conta a história relatada a si, pelo próprio João Gilberto [Ambos foram apresentados por um amigo em comum, no fim dos anos 60, quando João Gilberto voltava de apresentações nos Estados Unidos] : “Ele tinha muita vergonha de ir na casa de Tom Jobim, pois Tom Jobim era uma pessoa rica, de Ipanema, e ele [João Gilberto] morava na cidade, era muito esquisito, como é ainda hoje, mas é uma pessoa legal. Mas finalmente ele se aproximou de Tom, e Tom ficou maravilhado pelo jeito dele tocar, ficou logo influenciado, como também muita gente. Daí tom fez um convite a ele, e ele não foi, não foi... Quando finalmente foi, Tom disse, “olhe, é o seguinte, uma aluna minha fez esse tema que, eu achei interessante...” Aí tocou um pedacinho de uma coisa que parecia Chega de Saudade, mas não era... “Eu queria fazer uma música parecida com isso, mais ou menos assim, porém, eu queria fazer do seu jeito... Do jeito que você tem pra tocar.” [Fala como sendo Tom Jobim] Aí ficaram, tocaram, e de fato, ele me disse que, no fundo ele é parceiro de Chega de Saudade. Só que ele não aceitou, porque, Tom apenas ficou vendo ele tocar... Tom botava os acordes, ele fazia e tal... E aí talvez tenha sido a primeira composição para o estilo já com a influencia de João Gilberto. Que depois Vinicius [de Moraes] colocou a letra.”

A interferência de João

Se Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, é considerado o marco inicial da bossa nova, o ponto de partida para o jeito João Gilberto de se fazer esse novo samba, pode ser entendido a partir do primeiro disco do baiano, de 1959, Chega de Saudade.
No disco, as caracteristicas mais marcantes de João Gilberto - e grande legado para a música brasileira e mundial – são reforçadas, e confirmadas: O seu canto, e seu violão. Quando João canta, as palavras são mais articuladas, favorecendo o tom coloquial do canto, em detrimento de uma interpretação mais lírica, com maior emissão sonora, que ainda remeteria a Carmem Miranda. Na parte do violão, antes de sua famosa batida, deve-se entender uma outra inovação, o rompimento com a formação instrumental utilizada na música popular brasileira até a década de 1950, o chamado “conjunto regional”. Este, era basicamente formado por cavaquinho ou bandolim para a região aguda, violão para os sons médios, e violão de sete cordas ou contrabaixo para a parte grave, e um pandeiro na parte ritmica. Nas interpretações de João Gilberto, o violão deixa de se apresentar como parte de um todo, para ser utilizado como instrumento solo. Mesmo quando existem outros instrumentos acompanhando, o violão [e aí, entenda-se, o arranjo feito por João Gilberto para o violão] passa a ser o centro da música, tocando não apenas na região média, como também na grave, e na aguda. Suprindo as funções que antes caberiam ao bandolim, ou ao contrabaixo. A partir desse arranjo violonístico é que é feito, então, o arranjo para os demais instrumentos, que apenas servem de apoio para o violão.

A importância de João Gilberto é incontestável, tanto para o que se chama de bossa nova, como para a música, brasileira e mundial, e pode parecer injustiça se falar das mudanças promovidas pela bossa nova, sem mencionar outros nomes, até anteriores à entrada de João Gilberto. Porém, se na busca dessa juventude por uma identidade musical, estavam Roberto Menescal, Tom Jobim, Carlos Lyra, entre muitos outros, pode-se afirmar, sem receio de erro, de que foi João Gilberto o grande catalizador dessa nova estética mais suave e simplificada para a música popular brasileira. No violão, e no canto de João Gilberto está uma síntese precisa de todos os alicerces antes lançados por outros músicos. Dessa forma, embora possa causar polêmicas, não é nenhum pecado que o marco zero da bossa nova tenha sido eleito como o disco Canção do Amor Demais, com a primeira interferência do jeito João Gilberto na música brasilera.