Bossa Nova – Os 50 anos do silencioso grito de João Gilberto

Fernando de Lucena

Em fins dos anos 1950 as canções da Música Popular Brasileira não mais se identificavam com a juventude. A temática dor de cotovelo desse cancioneiro contrastava com os novos anseios – que pouco depois foram sintetizados na expressão “paz e amor” - e de temáticas mais leves e descompromissadas do jovem brasileiro. A busca por essa identidade musical se estendeu pela década seguinte, resultando numa revolução de diretrizes da MPB, calcada na expressão “bossa nova”, e representada por seu maior ícone: João Gilberto com sua interpretação silenciosa.

Os primeiros encontros de bossa nova se estabeleceram de forma bastante casual – em reuniões da classe média carioca - quando esta nova sonoridade ainda nem se sabia como gênero musical, apenas como a busca de uma nova forma de se tocar samba, ou mais além, de se fazer música. Como conta Tuzé de Abreu [compositor baiano, e flautista da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia], “Bossa Nova era uma gíria da época, como se dissesse assim, irado, ou legal, só depois que ficou sendo como o nome de um gênero”. A palavra bossa, no entanto, já havia sido utilizada na década de trinta, na canção São Coisas Nossas, de Noel Rosa, onde diz, “(...) O samba, a prontidão/e outras bossas, /são nossas coisas, /são coisas nossas (...).”. E em 1959, Tom Jobim descreveria João Gilberto como “Um baiano bossa nova” na contracapaca do primeiro disco do violonista

Apesar da estreia de João Gilberto em disco solo datar de1959, o cinquentenario da bossa nova tem como marco o lançamento do clássico disco de Elizeth Cardoso, Canção do Amor demais, de 1958. No disco, ela canta músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e é acompanhada pelo violão de João Gilberto. E foi com este disco, e a partir deste acompanhamento que, João Gilberto, tempos depois passou a ser conhecido no mundo inteiro como o “inventor” da batida da bossa nova, tendo na canção Chega de Saudade, o grande marco, e divisor de águas do genero, para muitos.

Sobre a canção-ícone da bossa nova, e a entrada do músico baiano no círculo bossa novista, Tuzé de Abreu conta a história relatada a si, pelo próprio João Gilberto [Ambos foram apresentados por um amigo em comum, no fim dos anos 60, quando João Gilberto voltava de apresentações nos Estados Unidos] : “Ele tinha muita vergonha de ir na casa de Tom Jobim, pois Tom Jobim era uma pessoa rica, de Ipanema, e ele [João Gilberto] morava na cidade, era muito esquisito, como é ainda hoje, mas é uma pessoa legal. Mas finalmente ele se aproximou de Tom, e Tom ficou maravilhado pelo jeito dele tocar, ficou logo influenciado, como também muita gente. Daí tom fez um convite a ele, e ele não foi, não foi... Quando finalmente foi, Tom disse, “olhe, é o seguinte, uma aluna minha fez esse tema que, eu achei interessante...” Aí tocou um pedacinho de uma coisa que parecia Chega de Saudade, mas não era... “Eu queria fazer uma música parecida com isso, mais ou menos assim, porém, eu queria fazer do seu jeito... Do jeito que você tem pra tocar.” [Fala como sendo Tom Jobim] Aí ficaram, tocaram, e de fato, ele me disse que, no fundo ele é parceiro de Chega de Saudade. Só que ele não aceitou, porque, Tom apenas ficou vendo ele tocar... Tom botava os acordes, ele fazia e tal... E aí talvez tenha sido a primeira composição para o estilo já com a influencia de João Gilberto. Que depois Vinicius [de Moraes] colocou a letra.”

A interferência de João

Se Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, é considerado o marco inicial da bossa nova, o ponto de partida para o jeito João Gilberto de se fazer esse novo samba, pode ser entendido a partir do primeiro disco do baiano, de 1959, Chega de Saudade.
No disco, as caracteristicas mais marcantes de João Gilberto - e grande legado para a música brasileira e mundial – são reforçadas, e confirmadas: O seu canto, e seu violão. Quando João canta, as palavras são mais articuladas, favorecendo o tom coloquial do canto, em detrimento de uma interpretação mais lírica, com maior emissão sonora, que ainda remeteria a Carmem Miranda. Na parte do violão, antes de sua famosa batida, deve-se entender uma outra inovação, o rompimento com a formação instrumental utilizada na música popular brasileira até a década de 1950, o chamado “conjunto regional”. Este, era basicamente formado por cavaquinho ou bandolim para a região aguda, violão para os sons médios, e violão de sete cordas ou contrabaixo para a parte grave, e um pandeiro na parte ritmica. Nas interpretações de João Gilberto, o violão deixa de se apresentar como parte de um todo, para ser utilizado como instrumento solo. Mesmo quando existem outros instrumentos acompanhando, o violão [e aí, entenda-se, o arranjo feito por João Gilberto para o violão] passa a ser o centro da música, tocando não apenas na região média, como também na grave, e na aguda. Suprindo as funções que antes caberiam ao bandolim, ou ao contrabaixo. A partir desse arranjo violonístico é que é feito, então, o arranjo para os demais instrumentos, que apenas servem de apoio para o violão.

A importância de João Gilberto é incontestável, tanto para o que se chama de bossa nova, como para a música, brasileira e mundial, e pode parecer injustiça se falar das mudanças promovidas pela bossa nova, sem mencionar outros nomes, até anteriores à entrada de João Gilberto. Porém, se na busca dessa juventude por uma identidade musical, estavam Roberto Menescal, Tom Jobim, Carlos Lyra, entre muitos outros, pode-se afirmar, sem receio de erro, de que foi João Gilberto o grande catalizador dessa nova estética mais suave e simplificada para a música popular brasileira. No violão, e no canto de João Gilberto está uma síntese precisa de todos os alicerces antes lançados por outros músicos. Dessa forma, embora possa causar polêmicas, não é nenhum pecado que o marco zero da bossa nova tenha sido eleito como o disco Canção do Amor Demais, com a primeira interferência do jeito João Gilberto na música brasilera.

Nenhum comentário:

Postar um comentário