......Acreditou ver sua vida passando por seus olhos como num flashback: as cirandas de roda na escola, as traquinagens de infância, o primeiro beijo, a primeira discussão após o “sim” no altar, as primeiras sílabas de seus filhos.
......Deparou-se, somente então em consciência, com a indagação surreal de todos os dias: “Afinal, quem eu sou?”. Surreal, porque parecia algo além do que sua realidade sugeria. Surreal, porque de fato nunca passou de um sonho a menção de que era um indivíduo, e não mais um número.
......Incrível como que, com o passar dos anos, perde-se este referencial. Quando se dá conta, é só mais um na fila do banco, esperando sua vez chegar.
......Ele viu-se desesperado ao concluir tudo isso na velocidade do pensamento, frações de segundo foram-lhe suficientes para apontar-lhe sua identidade: “Sou casado, pai de dois filhos, cidadão brasileiro, pago meus impostos, cumpro com horários, e aos finais de semana ligo para pizzaria para que tragam-me meu jantar.”
......Quando percebeu, o simples desespero havia transformado-se em um grande mal que lhe acometia, trazendo-lhe o remorso por tudo que deixara de fazer.
......E ao passo que essas questões atormentavam-no, tinha menos de um segundo para facultar entre pisar no acelerador ou no freio.
......As luzes da cidade nada clareavam seus pensamentos, mas confundiam e alucinavam-no como nunca. Numa calçada avistava o vulto de um rapaz – seria ele quem lhe tiraria o livre arbítrio? – a sua frente, a metamorfose do semáforo (nunca havia notado tanto sua presença até então). Um caminhão que partia em arrancada na rua concorrente. E o tempo, correndo contra.
......Nada reafirmava-se em meio a tantas transgressões repentinas.Mas uma certeza surgia: a de que tal evento viria a alterar vertiginosamente a órbita dos fatos.
......O verde deu lugar ao amarelo: sinal de que o tempo remanescente se comprimia. O rapaz, surgindo na penumbra da rua, deu um passo à frente: sinalizava sua intenção. O caminhão acelerava: sinal de que não esperaria. E o corpo começou a mandar seus próprios sinais: as mãos trêmulas, à espera do cérebro para governa-las; este aturdido, não era capaz de obedecer ordens – quanto mais envia-las.
......Na ausência de qualquer outro sentido, deixou por um momento ao sabor do acaso – e da quantidade exorbitante de adrenalina liberada. Seus olhos cerraram. Sua perna moveu-se, assinalando sua crucial escolha. Os pneus não chegaram a cantar (mesmo porque não os teria ouvido).
......E foi encomendando a própria alma que avistou, extasiado, o jovem ali em pé, ao seu lado.
......“ – O senhor está bem? Parece até que viu uma assombração! Se quiser, chamo ajuda.”
......Sorriu, e com a cabeça fez sinal de negação, afirmando estar tudo bem.
......Envergonhado de sua fraqueza, continuou o trajeto de volta para casa. Aquela certamente seria a maior de todas as lições que tomara naquela insólita noite.
......O que esperavam? Este cidadão por si só já era infeliz! Ao menos permitam-no chegar em casa para tomar conta de seus filhos.
......(E fingir que não é mais uma entre tantas “balas perdidas” que por aí perambulam).
O título é sem comentários. O diálogo do título com o texto é uma das grandes sacadas! Além do cuidado no desenvolvimento da idéia, dos uso dos adjetivos e da patada final!
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